O debate sobre o waterboarding,
ou simulação de afogamento, pode provocar uma questão: por que é que parece tão
difícil definir se uma técnica é tortura? Para tentar perceber, falámos com
três especialistas americanos em direito
O vice-presidente americano veio
dizer, com toda a sinceridade, que aprovou o uso de "técnicas de interrogatório
agressivas" como o waterboarding (simulação de afogamento), uma técnica
geralmente classificada como tortura. Dick Cheney disse-o mesmo depois de numa
comissão de inquérito do Senado ter considerado que os interrogatórios foram
longe de mais, e quando ninguém crê que a técnica vai voltar a ser usada pelos
Estados Unidos num futuro próximo. Mas o vice-presidente garantiu, na mesma
entrevista (de 15 de Dezembro), que os EUA "não torturam".
Sabemos que estamos em território
movediço quando há dúvidas sobre como descrever a simulação de afogamento.
Parece tortura é uma prática em que se enche as vias respiratórias com água
para que a pessoa tenha a sensação de que vai morrer afogada, e é geralmente
considerada tortura. Ou é mesmo tortura? Quem define o que é tortura?
Em tratados internacionais, como
a Convenção contra a Tortura, diz-se que a tortura inclui grave sofrimento
físico ou psicológico. A formulação é vaga, e não há nenhum local onde seja
dito exactamente o que é tortura, começa por dizer a directora do think-tank
National Institute of Military Justice, Michelle Lindo McCluer.
Mas "isto é provavelmente o
melhor que se consegue fazer", opina o professor de Direito na Loyola
School of Law de Los Angeles David Glazier. Se houvesse uma lista de técnicas
específicas, "torturadores mais espertos iriam simplesmente desenvolver
novas formas que não estavam nas listas e clamar inocência", diz numa
entrevista por e-mail ao P2. "Países civilizados, incluindo os Estados
Unidos, não tiveram problemas em identificar estes actos de tortura no passado,
incluindo waterboarding e outras práticas como privação do sono e exposição
prolongada a temperaturas extremas", comenta Glazier.
Já o advogado David B. Rivkin,
perito do Council on Foreign Relations e especialista em contencioso da empresa
Baker Hostetler, diz que consegue imaginar formas de waterboarding que sejam
tortura e outras que não. "Se falamos de deixar uma pessoa com a cabeça
imersa em água até que quase sufoque, claro que é tortura. Mas se for deitada
alguma água pela cabeça da pessoa abaixo, de modo a causar algum desconforto,
pode até entrar e sair alguma água pelo nariz, enfim, talvez não seja
tortura", diz, por telefone, ao P2.
No entanto, os três especialistas
em direito concordam que a técnica não será usada nos EUA pelo menos nos
próximos anos, pelo menos até um próximo ataque.
Mas David Rivkin (que trabalhou
ainda nas administrações de Bush pai e Ronald Reagan) critica que o debate se
tenha centrado sobretudo no waterboarding, técnica usada em três detidos (entre
os quais o alegado "cérebro" do 11 de Setembro, Khalid Sheikh
Mohammed), e comenta ainda: "Acho que é triste que estejamos prestes a
tratar melhor terroristas do que tratamos criminosos comuns, como os
assaltantes de bancos ou violadores."
Significados diferentes
David Glazier pensa que a
definição do que é tortura se torna mais complicada nos Estados Unidos por
causa da natureza do sistema legal. "Infelizmente a lei norte-americana é
complexa no seu tratamento da lei internacional", comenta.
Os tratados internacionais, como
os que definem o que é tortura, "raramente são directamente incorporados
na lei norte-americana", explica. "Normalmente o Congresso aprova um
estatuto que faz com que os termos do tratado façam parte da lei americana, e
os tribunais actuam com base nesse estatuto, não na lei internacional",
continua. "E ainda que as palavras possam ser as mesmas, o sentido pode
ser diferente na lei internacional e na lei americana", adianta o
professor de Direito.
"Isso foi justamente o que
responsáveis da Administração Bush tentaram fazer em 2002: emitiram uma opinião
legal dizendo que a definição de tortura devia ter uma interpretação muito
fechada para excluir as chamadas 'técnicas de interrogatório
agressivas'".Outra especificidade que torna o assunto complicado é que
vários ramos das forças de segurança têm as suas próprias regras em relação ao
que é ou não possível fazer, diz pelo seu lado a especialista em direito
militar Michelle McCluer, numa entrevista telefónica. "A CIA, por exemplo,
tem regras diferentes das do Exército. E o seu modo de funcionamento e estas
regras são normalmente envoltas em segredo", adianta.
De qualquer modo, depois da
comissão bipartidária ter dado o seu parecer no início do ano, a técnica já não
será usada. Mesmo que um vice-presidente venha dizer que aprovou o uso da
técnica e que ela deu frutos em relação à informação recolhida.
"Primeiro, há dúvidas sobre
a qualidade da informação dada por suspeitos a quem é feito waterboarding.
Depois, há uma grande probabilidade de que um juiz não a reconheça como
passível de ser usada no processo judicial. Finalmente, se alguém recebe ordens
para aplicar uma técnica ilegal tem não só a possibilidade como o dever de
recusar", diz McCluer. Portanto, "supostamente, não deve ser mais
usada" por qualquer ramo das forças de segurança norte-americanas.
Michelle McCluer sublinha que o
waterboarding não foi desenvolvido inicialmente como técnica de interrogatório
pelas forças americanas. Fazia, isso sim, parte do treino dos militares
americanos, porque poderiam ser submetidos a essa prática, caso fossem feitos
prisioneiros de guerra. "Simplesmente inverteu-se o pensamento e passou a
usar-se esta técnica para interrogatório, sem qualquer ideia se levaria a
informação fiável", comenta.
A antiga militar não duvida de
que esta é uma situação muito invulgar, se não inédita, na história militar dos
EUA. "Quando há uma guerra, há escândalos. Sabe-se que houve coisas feitas
à margem das regras. Na guerra do Vietname isso aconteceu de certeza: sabe-se que
estivemos em países onde não tínhamos autorização para estar, por exemplo. Mas
de facto ter uma comissão bipartidária a dizer que uma técnica que se usou e
que teve o aval de altos responsáveis de uma Administração foi longe de mais,
isso sim, é muito invulgar." Glazier considera mesmo que houve
"reinterpretações" sobre o que é tortura por responsáveis da
Administração Bush que "são muito diferentes do que tem sido a prática
histórica dos Estados Unidos".
fonte: Público
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